quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Sobre médicos estrangeiros, outra verdade e a dura realidade da nossa saúde.

Palavras da sábia Dra Jane.

"Ainda sobre médicos
Sou médica já aposentada, mas ainda trabalho. E muito. Tenho consultório e faço vários trabalhos voluntários junto às entidades que atendem crianças (sou pediatra) e no próprio SUS. Portanto, a trajetória ainda é longa pela frente, por opção minha.
Ouço e leio muito sobre a atual crise na saúde, importação de médicos, falta de infraestrutura etc. Também recebo críticas por uma suposta “acomodação” ao status quo. É tudo verdade. Trabalhei mais de vinte anos em uma unidade do SUS de atendimento a crianças e gestantes. Comecei lá com um prédio novo, pintado, com ar condicionado, onde se oferecia não só atendimento médico, de enfermagem e nutricional, mas algumas medicações e vacinas. Éramos referência na cidade em atendimento materno-infantil. Todos tinham acesso, desde que conseguissem fichas, aliás bem disputadas por pessoas de todos os cantos da cidade.
Com o passar dos anos, as modificações que o tempo traz se fizeram sentir. O chão tinha buracos de até 20cm de diâmetro, os cupins se instalaram pra sempre e até a parte elétrica entrou em colapso. O que fizemos? Com a ameaça de interdição pelos bombeiros e um poder público que nada fazia já naquela época, nos cotizamos para trocar os fios e continuar trabalhando. Pediatras e obstetras, atendentes, enfermeiras, nutricionistas, todos contribuíram para que não fechasse o “nosso posto”. E assim seguimos por mais muitos anos, sem que qualquer reparo necessário se fizesse. Lembro que tinha que limpar a folha de prescrição várias vezes durante as consultas, para retirar o pó de madeira que insistia em pingar do teto. Cheguei a cair porque pisei nesse mesmo pó que, em grande quantidade, se acumulava também no chão e era como sabão. Chamamos operários da obra em frente e pedimos que tapassem os buracos do chão antes que uma grávida também caísse (nossa faxineira era amiga de um dos operários). Nos dias de chuva, improvisávamos baldes e tigelas diversas para diminuir o alagamento das salas. E seguimos trabalhando. O próprio Ministério Público teve que se manifestar e impor a solução, mas não foi fácil e lá se foram mais alguns anos de negociação.
Sim, somos acostumados aos maus tratos pelos sucessivos governos. Sim, seguimos improvisando e tentando resolver problemas que, a priori, não nos cabem. Sim, sim, sim. Somos também um pouco culpados pelo caos que se instalou ao longo dos anos. E por um motivo bem simples: não somos importantes. Se fazemos greves, abaixo-assinados ou o que for, nada muda. Já fiz tudo isso e sei do que falo. Também não adiantou falar pessoalmente com prefeito ou secretário de saúde. No máximo, conseguimos um tapinha nas costas. Que nem doeu.
Seguimos adiante prestando atendimento em situação precária porque, se não o fizermos, quem atenderá nossos pacientes? Em que outro beco serão instalados? Ou nem isso? Trabalhamos também por amor, além do salário. Mas o poder público sempre deu as costas para a saúde. Agora vem com essa história de importar médicos. Falácia. Se quisessem realmente resolver um pouco dessa grande reivindicação, usariam a mesma varinha de condão que fez brotar do nada estádios monumentais até em cidades sem time de futebol. Colocariam o dinheiro público que será repassado a Cuba (ao governo, não aos médicos) na criação de pequenos hospitais e laboratórios no interior, possibilitando a ida de médicos de qualquer nacionalidade lá trabalhar. Com diploma revalidado porque assim diz a lei. Com qualidade. Com atendimento digno à população.
As pessoas estão se iludindo. Todos precisamos de um pouco de sonho para sobreviver. Mas sonhar com os pés no chão rende frutos bem melhores.
Por último, tenho dó dos colegas que virão trabalhar aqui nesse regime de escravidão. Ou alguém será que entregaria ao governo de seu país 70% do que ganha sem questionar? Sem nenhum direito trabalhista (onde estão as leis desse país que tanto lutou por elas)? E trabalharia sem as mínimas condições de fazer diagnóstico além do estetoscópio e da palpação? Numa simples apendicite, como operar sem hospital? Não sei se esses pobres coitados terão direito a consumir bebida alcoólica, mas acho que vão se valer dela para aguentar ver pessoas morrerem sem chance de socorro. Deve ser duro ver mãe e filho sucumbirem em um parto difícil. Vocês podem argumentar que o grande Schweitzer trabalhou na África sem condições e lá fez a diferença. Mas isso foi noutro século. Já evoluímos (?) muito desde então. "
Jane Magalhães, pediatra, CRMRS 7389

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